Uma vez que nos encontramos no extremo ocidental da Europa, temos uma relação bidireccional com o Mediterrâneo e a cultura nele gerada. Trata-se de uma relação mítica, religiosa e cultural, e portanto de intercâmbio e diálogo a vários níveis que é um bom exemplo da nossa participação na construção de uma identidade cultural que nos transcende: basta pensar que a Antiguidade atribuía a Ulisses a fundação de Lisboa, facto mítico por excelência de que todavia a nossa capital guarda os vestígios na própria etimologia do seu nome: Ulisses < Ulissipo < Ulissipona < Lisboa. [...]
Mas, se preferirmos olhar no sentido oeste-leste, teremos de recordar que foi a segunda Cruzada, em viagem para Jerusalém, que ajudou o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, a conquistar Lisboa ao Islão.
E devemos ainda olhar mais de perto algumas relações muito especiais entre esse Mediterrâneo, de que mantivemos até hoje uma intensa memória cultural [...], e o Atlântico, cuja imensidade foi aberta por feitos marítimos que transformaram a visão europeia do planeta, deram uma nova dimensão à ecúmena e promoveram irrefutavelmente a própria concepção da unidade da espécie humana.
Esses feitos correspondem a um empreendimento europeu com evidente projecção identitária, do qual coube a Portugal ser a vanguarda. [...] Nessas viagens encontram-se também todas ou quase todas as nacionalidades europeias, representadas por marinheiros e soldados, mercadores e contrabandistas, missionários e aventureiros, cientistas e artesãos, piratas e condenados...
[...] A abertura oceânica desconjuntou as coordenadas axiológicas do espaço e do tempo no absoluto das quais funcionava o universo mítico da epopeia clássica.
Isto quer dizer que os humanistas dos séculos XV e XVI, agarrados à lição dos seus modelos gregos e latinos, não compreenderam a situação. Por muito que oferecessem os seus serviços à coroa portuguesa, não compreenderam que a realidade escapava à literatura canónica. Coube a Camões afinar a utensilagem literária de que o seu canto necessitava, combinando epopeia clássica e maravilhoso medieval, processos narrativos da canção de gesta e a influência de Ariosto, trechos de crónicas, de diários de bordo e de roteiros de navegação, tradição cultural e experiência vivida, para dar a medida no novo espaço e do novo tempo que se abria para a Humanidade [...].
A Europa soube, a partir dos descobrimentos marítimos, passar de um conhecimento qualitativo de base analógica para um conhecimento quantitativo de base empírica e esta mutação epistemilógica revolucionária reflectiu-se na sua identidade cultural, na sua relação com o mundo, nas suas perspectivas, descobertas e invenções científicas, na sua indagação sobre o ser humano, o seu mundo interior, o funcionamento do seu corpo, as suas concepções de tempo e espaço.
Vasco Graça Moura, A Identidade Cultural Europeia – Portugal e a Europa mediterrânica.
Fundação Francisco Manuel dos Santos, Ensaios da Fundação. Lisboa, 2013, pp.34-37.